Ocupar é preencher um local e dar significado e utilidade a ele. Ocupar é habitar um espaço inutilizado. Belo Horizonte possui hoje um déficit habitacional de 62,5 mil moradias, uma carência que remonta à época da construção da cidade. No que se refere às ocupações urbanas, no dia 12 de abril de 2018 o prefeito Alexandre Kalil (PHS) e o governador Fernando Pimentel (PT), assinaram dois decretos que regularizam 119 áreas ocupadas “irregularmente” em Belo Horizonte. Apesar de outras ocupações não terem sido atendidas, há muitos desafios para melhoria da condição de vida das 93 mil pessoas que moram nesses locais.
Com a assinatura, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) pretende transformar as ocupações em bairros organizados. A deliberação aborda todas as 115 áreas mapeadas pela 4ª Conferência Municipal de Política Urbana, em 2014, e ainda mais quatro ocupações da chamada região do Ribeirão Isidoro, presentes na Regional Norte.
No primeiro decreto, a PBH transformou em Área Especial de Interesse Social (AEIS) 119 locais da cidade. Estes em que a ocupação fundiária já está consolidada por uma relação de porte do terreno, tempo e quantidade de famílias em cada comunidade. No segundo decreto, a PBH estabeleceu o Plano de Controle e Monitoramento de Áreas Públicas.
Segundo a Secretária Municipal de Política Urbana (SMPU), Maria Caldas, o conceito de regularização fundiária abrange um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. Sendo assim, “melhorias” são parte de um processo de regularização, pois a “regularização” não é estritamente a aprovação do parcelamento dessas localidades.
“Para identificar as melhorias necessárias, é elaborado um Plano de Regularização Urbanística (PRU) ou estudo técnico. Em geral, a maior parte das demandas dessas localidades é para implantação de infraestrutura e equipamentos comunitários. Cada plano ou estudo apresenta as demandas específicas desses locais”, ressaltou Caldas.
De acordo com a Diretora de Planejamento da Urbel, Maria Cristina Fonseca, os recursos estão sendo previamente definidos e giram em torno de R$ 230 milhões. No entanto, não significa que o recurso será totalmente utilizado. Por enquanto, nove áreas estão com planos de regularização urbanística em andamento e duas por iniciar.
Maria Cristina contou que ainda não há previsão para realizar o PRU das 119 áreas. “Precisamos de conhecimento, de informação sobre as ocupações, porque não temos dados de caracterização socioeconômica e infraestrutura mínima. Só depois de termos um reconhecimento geral das ocupações é que podemos definir uma ação pública para essas áreas”, disse Fonseca.
Para a vereadora Bella Gonçalves (PSOL), ligada às Brigadas Populares e Frente Povo Sem Medo, o governo agora reconheceu a força dos movimentos. Foram várias manifestações e grande pressão ao Kalil.
“Com o apoio da gabinetona, com a Áurea Carolina (PSOL), conseguimos uma reunião com o prefeito para discutir a demanda da regularização. Ele baixou os dois decretos, mas ele não reconheceu como AEIS e sim como assentamentos de interesse social, que são dispositivos muito menos precisos na prática política. Agora quem vai fazer essa regularização, quando vai se dar, nada disso foi definido”, disse Gonçalves.
Outro ponto levantado pela vereadora é a atuação do Conselho Municipal de Habitação. Ela contou que o projeto de regularização não foi construído juntamente com o Conselho, não foi um processo participativo. “Está ocorrendo um esvaziamento do Conselho. Ele existe para exercer sua função. Ele precisa ser oxigenado e abrir para novas lideranças. Até hoje o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) não conseguiu participar”, criticou Gonçalves.
Frear as ocupações ilegais
Em Belo Horizonte há muito imóvel sem gente e muita gente sem casa: cerca de 80 mil famílias desabrigadas, enquanto há mais de 171 mil imóveis vazios na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Muitos são os motivos que levam as pessoas para uma ocupação urbana, como dificuldade de pagar aluguel, o sonho da casa própria e a solidariedade.
O segundo decreto assinado vai instituir uma força-tarefa dentro da prefeitura para controle e monitoramento de áreas públicas da cidade, com o intuito de coibir novas ocupações clandestinas. Para isso, a Guarda Municipal estará com uma equipe presente nas nove regionais para acompanhar e vigiar a situação dos terrenos públicos.
De acordo com a secretária Maria Caldas, o monitoramento para conter novas ocupações terá o envolvimento de diversos órgãos responsáveis por coordenar as ações, envolvendo: a) atualização e consolidação do banco de dados dos imóveis públicos; b) monitoramento das áreas públicas com vistoria diária por equipe de monitoramento em todas as regionais; c) promoção de ações de orientação e convencimento para a desmobilização de ações de ocupação ou uso irregular de áreas públicas; e) acionamento de autoridades competentes para a promoção de ações de coerção, intimação, desfazimento, quando for o caso.
Sobre a possibilidade de desapropriação, Maria Caldas pontuou: “A avaliação da necessidade do ato vai depender do desenvolvimento dos Planos de Ação e de Regularização dessas áreas. A premissa do Plano será garantir o direito à moradia para famílias de baixa renda. Mas poderão ser identificados casos de necessidade de desapropriação/reassentamento, por exemplo, em situações de risco, ocupação de áreas de preservação permanente, etc.”, explicou Caldas.
Exemplo de nova ocupação é a ocupação do Vicentão, localizada no centro da capital, com 78 famílias.
As ocupações vão se espalhando pelas brechas dos viadutos, com barracos de lona, papelão e equipamentos como carrinhos de supermercados. A maioria dessas pessoas são moradores em situação de rua, alguns usuários de droga. O controle das ocupações às margens das vias de Belo Horizonte é complexo. Quando é uma área privada o proprietário é informado, orientado a respeito da ocupação irregular e realização do embargo da obra em andamento. Mas compete ao dono do espaço mover ação de reintegração de posse. Nas áreas públicas, são feitas demolições pelo Grupo Executivo de Controle e de Monitoramento de Áreas Públicas da PBH.
Segundo Leonardo Péricles, coordenador do MLB, essas áreas não são de interesse social. “O que foi conquistado é uma luta e uma pressão dos movimentos sociais que estão mais organizados. Teve também um apoio social muito grande. Uns seis anos atrás as pessoas achavam que isso não dava voto e se posicionavam contra as ocupações, mas muitos viram o contrário com a derrota do ex-prefeito Márcio Lacerda e se isolaram”, apontou Péricles.
Maria Cristina Fonseca, da Urbel, informou que 45% do déficit habitacional de Belo Horizonte é composto por pessoas que moram de aluguel, mas que pagam um valor caro diante da sua condição de vida. Péricles alertou que boa parte desse problema poderia ser solucionado com a ocupação de prédios abandonados no centro da cidade.
“Há um estudo que vem catalogando essas áreas centrais. O centro é um espaço onde as famílias podem ter infraestrutura. A prefeitura não iria precisar asfaltar, colocar ônibus, escola, saúde e tudo isso beneficiaria essas pessoas, dando também acesso ao lazer”, declarou Péricles.
A Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU) não confirmou se será realizada construção de casas para reassentar algumas famílias. O Programa Vila Viva é uma referência sobre a percentagem de produção habitacional para realizar urbanização. Conforme relatório de gestão 2017 da Companhia Urbanizadora da URBEL, o Programa Vila Viva atendeu 12 comunidades, aproximadamente 45.784 foram beneficiados, sendo implantados nesse programa 5.732 unidades habitacionais.
As ocupações acontecem por pessoas que lutam pelo direito à cidade e à moradia, ocupando grandes propriedades abandonadas, que não cumprem a função social descrita pela constituição brasileira. Essas pessoas estão respaldadas pelos artigos 182 e 183 da Constituição Federal e, também, pela lei federal 10.257/2001, o Estatuto das Cidades, que regem que a propriedade deve cumprir sua função social.
A função social de uma propriedade se dá com a utilização para implantar uma empresa, hospital, escola, universidade e para construir moradias, legítimos usos de uma propriedade.
Locação Social
Uma solução que tem sido bastante discutida na PBH, e já há um Projeto de Lei 426/17 na Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte (CMBH), é a da Locação Social. Uma concessão de subsídio temporário para auxílio habitacional, que está entre as ações passíveis de recebimento de recursos do Fundo Municipal de Habitação Popular.
A inclusão do subsídio temporário para auxílio habitacional possibilitará ao município ampliar o atendimento à demanda habitacional para famílias que se encontrem em risco social ou geológico e que não disponham de recursos para arcar com moradia.
Conforme afirmou a vereadora Bella Gonçalves (PSOL), o PL cria uma nova regulamentação da bolsa aluguel. No Conselho Municipal de Habitação já havia uma discussão sobre esse modelo. Alugar prédios privados com um aluguel barato ou a utilização de um parque público que possa implementar essa locação social.
“A modalidade é interessante, mas se conseguir ser conjugada com as modalidades compulsórias de desapropriação dos imóveis vazios do centro. São mais de cem imóveis que a prefeitura identificou. É pegar os elementos que estão previstos na Legislação Municipal e nessa nova Lei de Regularização Fundiária, isso avançaria no direito do povo ao centro”, ressaltou Gonçalves.
Uma dessas ocupações, que poderia sofrer esse tipo de intervenção, é a Vicentão, no centro de BH. O imóvel ocupado está com vários problemas judiciais. Só de débitos de IPTU há competências em aberto dos anos de 2002, 2003, 2005, 2006, 2007, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018.
Ocupação, homenagem e luta
Toda ocupação é constituída de muita luta. Um governo que realmente esteja a favor dos interesses populares elabora políticas públicas para sanar os problemas de urbanização das comunidades. Isso significa implementar a regularização fundiária, de água, energia, esgoto, iluminação pública, calçamento etc. A Copasa e a Cemig já sinalizaram que podem iniciar as obras para garantir energia elétrica regular e saneamento básico para esses assentamentos, mas aguardam um parecer da PBH.
É nessa luta por uma moradia e conquista de espaço e estruturas básicas de vida, que cada morador se empenha para decidir sobre a cidade que se quer. E com essa perspectiva de mudança, os nomes das ocupações na RMBH têm surgido para homenagear personagens de lutas políticas do passado e do presente. Como é o caso das ocupações Vicentão, Dandara, Rosa Leão, entre outras.
A ocupação Vicente Gonçalves, “Vicentão”, homenageia o advogado popular, negro e uma das principais lideranças faveladas de Belo Horizonte. Falecido em 2016, com mais de 80 anos, dos quais lutou por mais de 70. Vicentão atuou em várias comunidades, tais como a Cabana do Pai Tomás, Morro Querosene, Nova Cintra, Conjunto Santa Maria, Vista Alegre, etc.
Outro caso é o da ocupação Dandara, que fica no Céu Azul, região da Pampulha. A denominação foi um resgate a uma personalidade simbólica na história do Brasil: Dandara, esposa de Zumbi, o rei do Quilombo dos Palmares. Ela foi a principal liderança feminina contra a escravidão. Quando os bandeirantes invadiram o Quilombo, Dandara preferiu pular de um penhasco, pois jamais voltaria a ser escrava.
A ocupação Irmã Dorothy, localizada no vale do Jatobá, no Barreiro, escolheu o nome em tributo à freira norte-americana que veio ao Brasil e lutou pela melhoria de vida dos amazonenses. Em 2005, Irmã Dorothy foi assassinada com seis tiros.
A região da Izidora resgatou a memória de uma mulher negra que lavava roupa no córrego da Izidora. A coordenadora e moradora da ocupação Rosa Leão, que faz parte da região da Izidora, Charlene Egídio, explica que a ocupação surgiu de forma espontânea. Os lotes foram escolhidos aleatoriamente pelos futuros moradores.
“Fiz uma barraca de lona preta. Ela não rasgou porque eu coloquei duas camadas de lona. Dava aranha, cobra, todo tipo de bicho. Uma companheira e liderança da Zilah Spósito procurou os movimentos sociais lá no Dandara. Graças a Deus que eles chegaram. Aí convocamos uma assembleia e decidimos o nome. Foi uma homenagem a uma mulher negra, periférica e liderança da Zilah Spósito que foi executada aos 40 anos na comunidade. Lembro dela quando tinha 14 anos. Era realmente uma leoa”, relembrou Egídio.
Cada dia mais famílias se fazem presentes nesses espaços de luta e resistência. O Poder Público começa a enxergar que não se pode mais negar a presença das ocupações urbanas e a necessidade de serem inseridas no cotidiano da cidade e atendidas pelos serviços públicos e de direito do cidadão.
Charlene Egídio relembrou que foi a partir das assembleias na Rosa Leão que eles começaram a se organizar. Foram determinadas coordenações de quadras e definição do tamanho padrão dos lotes (8m² X 16m²). Eles tiveram ajuda também de arquitetos da UFMG e dos arquitetos sem fronteiras, que desenharam as áreas de risco, de preservação ambiental e tamanho das ruas (ainda de terra).
“Ninguém tem noção do que é viver num espaço que você não tem direito a nada. Nem a luz. A luz cai e queima aparelhos, prejudicando gente que toma insulina e a geladeira estraga, não tem esgoto, pois a fossa enche, não tem água direito. Você não tinha direito nem a consultar, nem a pôr seu filho na escola. Sem direito a nada. Aí você vem e constrói, resiste e faz um bairro sem administração pública. É muita luta”, contou Egídio.
As ocupações se apresentam como solução ao déficit de moradia para os mais pobres. Sua consolidação, após luta e resistência, mostra a possibilidade de conquista do direito à regularização fundiária. Como nos disse Charlene Egídio, a ocupação é uma formação diária de pessoas excluídas da cidade. “A necessidade supera o medo!”, revelou Egídio. E nos nome de luta de cada ocupação fica evidente uma triste realidade e a necessidade de uma mudança profunda.